segunda-feira, 8 de julho de 2024

Entendendo nossa era secular

No período medieval o “secular” correspondia a algo semelhante ao “temporal”, as vocações terrenas eram vistas como mundanas que se dividia entre o sagrado e o secular pela igreja Católica Romana (visão desconstruída pela Reforma Protestante). O padre e os monastérios seguiam uma vocação sagrada ao passo que o açougueiro e padeiro estavam seguindo uma vocação secular.

No período da modernidade (Iluminismo) o secular passou a ser visto como neutro ou não religioso. Escolas públicas passaram a ser seculares quando não eram mais paroquiais, ou seja, no final do século XX o secular era entendido como algo que não tinha filiação religiosa.

Mas há um terceiro sentido que Charles Taylor explica como secular. Ele define esse sentido como um humanismo exclusivo que é uma visão que exclui o transcendente tendo somente uma perspectiva imanente e autossuficiente. Passamos de uma sociedade em que a fé em Deus era inquestionável para uma sociedade que contesta a crença em Deus.

As pessoas viviam em um mundo encantado (perspectiva do mundo espiritual) aberto ao transcendente e não autossuficiente. Mas, a modernidade desencantou o mundo focando nas doenças, patologias mentais e no corpo sem alma. O sentido e o significado se tornaram uma propriedade da mente.

Esta foi uma mudança para um imaginário social, do mundo para a mente, assim como a obra Matrix (1999). O eu moderno é um eu protegido e isolado que o leva a uma autonomia da sua vida. O eu protegido não é mais suscetível a graça.

No âmbito social a incredulidade teve repercussões comunitárias. O eu protegido em relação ao transcendente criou um espaço para a nascente privacidade e permissão para a descrença. Uma comunidade, antes vista como um corpo social estritamente unida, passou a ser vista como um agregado de indivíduos livres para serem hereges ou ateus.

O eu privado levou as pessoas de uma comunidade a se protegerem de forma individualizada para não fazerem parte do time, por assim dizer. As disciplinas espirituais eram vistas como pesadas demais para uma babá ou um camponês.

O carnaval foi uma forma legitimada pela sociedade de se extravasar das pressões de se viver sob as exigências da eternidade/salvação. O carnaval passou a ser visto como uma válvula de segurança ou escape ao “peso” da virtude e a “carga” da boa ordem. A era moderna gerou duas opções para lidar com o problema da tensão:

  • Você poderia desaprovar a vida cotidiana da criação e exigir o monasticismo para todos; ou
  • Baixar as expectativas de eternidade/salvação consideradas pesadas na vida doméstica.

A Reforma Protestante buscou reformar e renovar a vida social com relação a visão distorcida entre o sagrado e o secular. A reforma mostrou a sociedade um padrão mais elevado, ou seja, um Deus que santifica o trabalho e a vida como um todo.

A Reforma trouxe a perspectiva do coram Deo (perante Deus), onde tudo pode ser feito para glória de Deus (Cl 3:17). A reforma recusou essa distinção entre o sagrado/secular, não somente padres e freiras são religiosos, mas também o padeiro e o açougueiro podem realizar suas atividades com um senso de devoção e adoração.

Para Taylor a Reforma Protestante abriu as portas para o humanismo exclusivo exatamente por nivelar a religião à altura das expectativas de santidade que antes não passavam das paredes dos monastérios. Para ele isso trouxe um certo desencantamento aos elementos sacramentais da velha religião.

Com a tentativa de trazer Cristo ao mundo não santificado e leigo, houve um novo interesse na natureza. As pessoas então aprenderam a distinguir o transcendente do imanente, e ficaram felizes em viver com objetivos puramente imanentes.

As pessoas não suportam viver num mundo sem sentido, e se o encanto com o transcendente que dava sentido ao mundo se perdeu, elas precisavam de uma nova narrativa sobre esse sentido. Taylor chama de “humanismo exclusivo” a nova opção de vida da modernidade.

É um novo imaginário que dá sentido à vida num universo material e natural (imanente) privado do transcendente. A eternidade e a graça são reduzidas e o mundo natural ampliado. Se a graça é menos essencial, a confiança em nós mesmos pode fazer este mundo ter sentido.

O problema do mal que antes era direcionado a ajuda e a busca de um Salvador, agora passou a ser conduzido de uma maneira consistente ao eu protegido insatisfeito com a justiça divina. O humanismo exclusivo transforma a capacidade humana autossuficiente, se preocupando mais com os outros, e rejeitando o cristianismo.

Com isso houve um crescente interesse em abandonar a noção de Deus como um ser pessoal. Tratar a Deus como um ser impessoal nega a importância da comunhão. Em face do mal, o eu protegido, senti um estranho consolo de estar sozinho, sem Deus. Há uma espécie de paz em estar por conta própria, em comunhão contra o universo que criou esse mal.

Se o imanente se torna autossuficiente, então o material tem de ser tudo o que há. A busca por amor, sentido, importância somente dentro da imanência gera um sentimento existencial de ausência e vazio que produz um acelerado ciclo de desejo e prazer na cultura do consumo.

Os novos espaços sagrados da modernidade se transformaram em concertos musicais, museus e turismo. Estes são os espaços imanentes que passaram a satisfazer o anseio por transcendência, sem ter de retornar a religião, causando expansão pela descrença.

A descrença passou a ser vista como uma postura de maturidade por causa de seu apelo do materialismo científico em contraste com a forma simplista da fé. Sendo assim, Deus está morto! Viva a capacidade da ciência!

A religião passou a ser vista como algo baseada na autoridade, falsa e irrelevantes, e as sociedades modernas conferiram um lugar de importância crescente à autonomia individual. A era secular tem determinado o lugar do sagrado e do espiritual. Se há algo para preencher vazios esse algo virá de nós.

Com a expansão do individualismo, o pecado não tolerado é a intolerância. O individualismo expressivo não perturba a ordem moral moderna, pois sua base ética é o relativismo: “faças o que gostas, quem sou eu para julgar?”

Numa sociedade governada pelo individualismo expressivo, o expressionista forja sua própria religião, seu próprio Jesus pessoal. O expressivismo, o sucesso da cultura do consumidor e a revolução sexual alienou muitas pessoas das igrejas. O enfoque passou a ser no indivíduo e na sua experiência.

Se a interpretação que temos sobre o transcendente é algo perigoso ao nosso supremo bem, então teremos uma visão fechada numa estrutura puramente imanente que tem associado a uma posição de maturidade em nossa era secular. A invocação da ciência tem se tornado mais uma posição ética, inclinada ao materialismo, sem um Deus.

Nessa visão fechada somos nós que teremos que criar nossas próprias visões positivas do bem. Aquilo que antes era tratado como pecado agora é visto como patologia (doença). A moralidade foi transportada para o campo terapêutico, tirando a responsabilidade das pessoas, levando-as para um lugar de vitimização.

Como consequência a mensagem do juízo final acaba se tornando irrelevante para as pessoas atualmente, pois se os vícios pecaminosos são interpretados como patologias, qual a necessidade de conversão (salvação)?

O humanismo exclusivo subestima a depravação humana. O cristianismo por outro lado tem uma visão pessimista acerca da possibilidade de satisfazermos a demanda máxima do que aqui e agora, pois em aspectos escatológicos, a solução envolve a transcendência algo que o humanismo exclusivo rejeita, principalmente algo como uma punição eterna.

Nesse aspecto a consciência cristã moderna tem se adaptado a era secular. Muitas igrejas emergentes que focam mais nas emoções e no amor de Deus, não deixam espaço para o inferno, para a ira de Deus e sua justa punição. Até mesmo a mensagem da cruz de Cristo é algo ofensivo (expiação), pois o que importa mesmo é a vida de Jesus. São igrejas antropocêntricas.

Vivemos em uma era secular em que as exigências de solidariedade e benevolência estão mais elevadas do que antes, e quem não atende as estas expectativas passa vergonha. Por exemplo: “você não recicla seu lixo?”; “você usa sacolas feitas de plásticos?”; “seu carro não é ecológico?”; você não vai usar o laço que simboliza a luta contra a AIDS”?

Esta é uma justiça chique. Essa filantropia (o amor ao ser humano), na verdade pode ser vestida de desprezo, ódio e agressão. Embora as pessoas possam estar motivadas a ajudar o pobre vulnerável, o que estão fazendo mesmo é dando, de maneira bem sutil, um tapinha nas próprias costas, reconhecendo sua superioridade moral.

Esta filantropia se torna uma misantropia (ódio pela humanidade). Por trás de toda sua pena e compaixão encontra-se uma repulsa secreta. E toda essa filantropia não passa de interesse próprio e autocongratulação.

Ainda há muitas coisas a serem analisadas, mas vamos ficando por aqui. Espero que este artigo possa lhe ajudar a interpretar um pouco da nossa era secular observando o modo como temos vivido a estrutura imanente. 

O cristão pode melhorar seu diálogo com as pessoas do mundo aprendendo a interpretar sua cosmovisão de maneira mais gentil, expressando compaixão e empatia por elas e com aquilo que elas estão produzindo. Ao invés de ficar interessado em vencer uma discussão, o cristão precisa estar mais interessado em promover diálogos inteligentes através de um método apologético.

 

REFERENCIAL TEÓRICO

SMITH, James K.A. Como (não) ser secular: Lendo Charles Taylor. Brasília: Monergismo, 2021.

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