No
período medieval o “secular” correspondia a algo semelhante ao “temporal”, as
vocações terrenas eram vistas como mundanas que se dividia entre o sagrado e o
secular pela igreja Católica Romana (visão desconstruída pela Reforma
Protestante). O padre e os monastérios seguiam uma vocação sagrada ao passo que o açougueiro e padeiro estavam seguindo uma
vocação secular.
No
período da modernidade (Iluminismo) o secular passou a ser visto como neutro ou não religioso. Escolas públicas passaram a ser seculares quando não
eram mais paroquiais, ou seja, no final do século XX o secular era entendido
como algo que não tinha filiação religiosa.
Mas
há um terceiro sentido que Charles Taylor explica como secular. Ele define esse sentido como um humanismo exclusivo que é uma visão que exclui o transcendente tendo somente uma perspectiva imanente e autossuficiente. Passamos de
uma sociedade em que a fé em Deus era inquestionável para uma sociedade que contesta
a crença em Deus.
As
pessoas viviam em um mundo encantado
(perspectiva do mundo espiritual) aberto ao transcendente e não
autossuficiente. Mas, a modernidade desencantou o mundo focando nas doenças,
patologias mentais e no corpo sem alma. O sentido e o significado se tornaram
uma propriedade da mente.
Esta
foi uma mudança para um imaginário social,
do mundo para a mente, assim como a
obra Matrix (1999). O eu moderno é um
eu protegido e isolado que o leva a uma autonomia
da sua vida. O eu protegido não é
mais suscetível a graça.
No
âmbito social a incredulidade teve repercussões comunitárias. O eu protegido em relação ao transcendente
criou um espaço para a nascente privacidade e permissão para a descrença. Uma
comunidade, antes vista como um corpo social estritamente unida, passou a ser
vista como um agregado de indivíduos livres para serem hereges ou ateus.
O
eu privado levou as pessoas de uma
comunidade a se protegerem de forma individualizada para não fazerem parte do
time, por assim dizer. As disciplinas espirituais eram vistas como pesadas
demais para uma babá ou um camponês.
O
carnaval foi uma forma legitimada pela sociedade de se extravasar das pressões
de se viver sob as exigências da eternidade/salvação. O carnaval passou a ser
visto como uma válvula de segurança ou escape ao “peso” da virtude e a “carga”
da boa ordem. A era moderna gerou duas opções para lidar com o problema da
tensão:
- Você
poderia desaprovar a vida cotidiana da criação e exigir o monasticismo para
todos; ou
-
Baixar
as expectativas de eternidade/salvação consideradas pesadas na vida doméstica.
A
Reforma Protestante buscou reformar e renovar a vida social com relação a visão
distorcida entre o sagrado e o secular. A reforma mostrou a sociedade um padrão
mais elevado, ou seja, um Deus que santifica o trabalho e a vida como um todo.
A
Reforma trouxe a perspectiva do coram Deo
(perante Deus), onde tudo pode ser feito para glória de Deus (Cl 3:17). A
reforma recusou essa distinção entre o sagrado/secular, não somente padres e
freiras são religiosos, mas também o padeiro e o açougueiro podem realizar suas
atividades com um senso de devoção e adoração.
Para
Taylor a Reforma Protestante abriu as portas para o humanismo exclusivo exatamente por nivelar a religião à altura das expectativas de santidade que antes
não passavam das paredes dos monastérios. Para ele isso trouxe um certo desencantamento aos elementos sacramentais da
velha religião.
Com
a tentativa de trazer Cristo ao mundo não santificado e leigo, houve um novo
interesse na natureza. As pessoas então aprenderam a distinguir o transcendente
do imanente, e ficaram felizes em viver com objetivos puramente imanentes.
As
pessoas não suportam viver num mundo sem sentido, e se o encanto com o
transcendente que dava sentido ao mundo se perdeu, elas precisavam de uma nova
narrativa sobre esse sentido. Taylor chama de “humanismo exclusivo” a nova
opção de vida da modernidade.
É
um novo imaginário que dá sentido à vida num universo material e natural
(imanente) privado do transcendente. A eternidade e a graça são reduzidas e o
mundo natural ampliado. Se a graça é menos essencial, a confiança em nós mesmos pode fazer este mundo ter
sentido.
O
problema do mal que antes era direcionado a ajuda e a busca de um Salvador,
agora passou a ser conduzido de uma maneira consistente ao eu protegido insatisfeito com a justiça divina. O humanismo
exclusivo transforma a capacidade humana autossuficiente, se preocupando mais com
os outros, e rejeitando o cristianismo.
Com
isso houve um crescente interesse em abandonar a noção de Deus como um ser
pessoal. Tratar a Deus como um ser impessoal nega a importância da comunhão. Em
face do mal, o eu protegido, senti um estranho consolo de estar sozinho,
sem Deus. Há uma espécie de paz em estar por conta própria, em comunhão contra
o universo que criou esse mal.
Se
o imanente se torna autossuficiente, então o material tem de ser tudo o que há.
A busca por amor, sentido, importância somente dentro da imanência gera um
sentimento existencial de ausência e vazio que produz um acelerado ciclo de
desejo e prazer na cultura do consumo.
Os
novos espaços sagrados da modernidade se transformaram em concertos musicais,
museus e turismo. Estes são os espaços imanentes que passaram a satisfazer o
anseio por transcendência, sem ter de retornar a religião, causando expansão
pela descrença.
A
descrença passou a ser vista como uma
postura de maturidade por causa de
seu apelo do materialismo científico
em contraste com a forma simplista da fé.
Sendo assim, Deus está morto! Viva a capacidade da ciência!
A
religião passou a ser vista como algo baseada na autoridade, falsa e
irrelevantes, e as sociedades modernas conferiram um lugar de importância
crescente à autonomia individual. A era secular tem determinado o lugar
do sagrado e do espiritual. Se há algo para preencher vazios esse algo virá de
nós.
Com
a expansão do individualismo, o pecado não tolerado é a intolerância. O individualismo expressivo não perturba a ordem
moral moderna, pois sua base ética é o relativismo: “faças o que gostas, quem
sou eu para julgar?”
Numa
sociedade governada pelo individualismo expressivo, o expressionista forja sua
própria religião, seu próprio Jesus pessoal. O expressivismo, o sucesso da
cultura do consumidor e a revolução sexual alienou muitas pessoas das igrejas.
O enfoque passou a ser no indivíduo e na sua experiência.
Se
a interpretação que temos sobre o transcendente é algo perigoso ao nosso
supremo bem, então teremos uma visão
fechada numa estrutura puramente imanente que tem associado a uma posição
de maturidade em nossa era secular. A invocação da ciência tem se tornado mais
uma posição ética, inclinada ao materialismo, sem um Deus.
Nessa
visão fechada somos nós que teremos que criar nossas próprias visões positivas
do bem. Aquilo
que antes era tratado como pecado agora é visto como patologia (doença). A
moralidade foi transportada para o campo terapêutico, tirando a
responsabilidade das pessoas, levando-as para um lugar de vitimização.
Como consequência a
mensagem do juízo final acaba se tornando irrelevante para as pessoas
atualmente, pois se os vícios pecaminosos são interpretados como patologias,
qual a necessidade de conversão (salvação)?
O
humanismo exclusivo subestima a depravação humana. O cristianismo por outro
lado tem uma visão pessimista acerca da possibilidade de satisfazermos a
demanda máxima do que aqui e agora, pois em aspectos escatológicos, a solução
envolve a transcendência algo que o humanismo exclusivo rejeita, principalmente
algo como uma punição eterna.
Nesse
aspecto a consciência cristã moderna
tem se adaptado a era secular. Muitas igrejas emergentes que focam mais nas
emoções e no amor de Deus, não deixam espaço para o inferno, para a ira de Deus
e sua justa punição. Até mesmo a mensagem da cruz de Cristo é algo ofensivo
(expiação), pois o que importa mesmo é a vida
de Jesus. São igrejas antropocêntricas.
Vivemos
em uma era secular em que as exigências de solidariedade e benevolência
estão mais elevadas do que antes, e quem não atende as estas expectativas passa
vergonha. Por exemplo: “você não recicla seu lixo?”; “você usa sacolas feitas
de plásticos?”; “seu carro não é ecológico?”; você não vai usar o laço que
simboliza a luta contra a AIDS”?
Esta
é uma justiça chique. Essa filantropia (o amor ao ser humano), na verdade pode
ser vestida de desprezo, ódio e agressão. Embora as pessoas possam estar motivadas
a ajudar o pobre vulnerável, o que estão fazendo mesmo é dando, de maneira bem
sutil, um tapinha nas próprias costas, reconhecendo sua superioridade moral.
Esta
filantropia se torna uma misantropia (ódio pela humanidade). Por trás de toda
sua pena e compaixão encontra-se uma repulsa secreta. E toda essa filantropia não
passa de interesse próprio e autocongratulação.
Ainda
há muitas coisas a serem analisadas, mas vamos ficando por aqui. Espero que
este artigo possa lhe ajudar a interpretar um pouco da nossa era secular
observando o modo como temos vivido a estrutura imanente.
O
cristão pode melhorar seu diálogo com as pessoas do mundo aprendendo a
interpretar sua cosmovisão de maneira mais gentil, expressando compaixão e
empatia por elas e com aquilo que elas estão produzindo. Ao invés de ficar interessado
em vencer uma discussão, o cristão precisa estar mais interessado em promover
diálogos inteligentes através de um método apologético.
REFERENCIAL TEÓRICO
SMITH,
James K.A. Como (não) ser secular:
Lendo Charles Taylor. Brasília: Monergismo, 2021.